Um protestantismo racista e suas bases escravocratas

Um protestantismo racista e suas bases escravocratas

Nossa história é atravessada por 507 anos de Reforma Protestante e 494 anos do início da escravização de pessoas como prática comercial. Por que a igreja protestante não combateu a escravidão?

Com o objetivo de evidenciar como a Igreja Católica simbolizava o retrocesso e mostrar aos abolicionistas que o protestantismo era uma alternativa superior, a postura protestante delegava exclusivamente ao Estado questões políticas e sociais, atribuídas a “César”, enquanto a Igreja deveria se concentrar apenas em aspectos espirituais e morais.

Além disso, havia a crença de que os seres humanos são peregrinos neste mundo, resignados ao sofrimento em busca de uma felicidade futura incomparável e eterna. Essa perspectiva teológica justificava a cautela dos missionários, conforme apontado por Barbosa (2002).

É importante destacar que a escravidão era amplamente aceita na sociedade da época, e muitos missionários priorizavam a evangelização dos escravizados, sem questionar a legitimidade da escravidão.

 

Quem eram os missionários que trouxeram o protestantismo para um Brasil ainda escravocrata?

De acordo com a biografia escrita pela filha do casal fundador da primeira igreja batista no Brasil (Harrison, 1987), o trabalho batista no Brasil foi, indiretamente, produto da Guerra Civil dos Estados Unidos. Desanimados com a perda de terras e escravos como resultado da guerra, algumas centenas de famílias americanas migraram para o Brasil, incentivadas pelo convite do Imperador liberal, D. Pedro II. Estabeleceram-se no Estado de São Paulo, numa vila chamada Santa Bárbara.

O fundamentalismo das igrejas protestantes dos EUA criou um ambiente propício para racionalizações da escravidão, oferecendo uma base doutrinária que aliviasse a consciência dos proprietários de escravos do sul. Usando a narrativa de Noé, consideravam a maldição de Cam como uma condenação destinada aos negros.

As primeiras comunidades luteranas de imigrantes alemães se estabeleceram no Brasil a partir de 1824. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil é a maior e mais antiga corrente luterana no país. Contudo, em 1846, os primeiros escravos negros foram introduzidos na Colônia Alemã Protestante de Três Forquilhas, sob a iniciativa do pastor Carlos Leopoldo Voges, prática seguida por outros colonos protestantes.

Os missionários metodistas, que começaram suas atividades no Brasil em 1835, acomodaram-se ao ambiente escravista e pouco fizeram em favor dos escravos. A Igreja Metodista brasileira só se posicionou oficialmente contra o racismo em 1985, com a criação da pastoral de combate ao racismo.

Entre os presbiterianos, muitos mantinham posturas pró-escravidão. Quando, em 1886, o presbiteriano Eduardo Carlos Pereira publicou uma brochura abolicionista, outro missionário respondeu com um tratado antiabolicionista.

Os missionários anglicanos, por sua vez, mantiveram uma postura ambígua. Embora a Igreja da Inglaterra estivesse se movendo em direção à abolição, muitos anglicanos no Brasil possuíam escravos e contribuíram para perpetuar o sistema escravista.

Entre as denominações protestantes, os congregacionais se destacaram por sua oposição mais clara à escravidão. O casal Robert e Sarah Kalley fundou, em 1855, a primeira Igreja Evangélica de estilo congregacionalista e fala portuguesa no Brasil. Robert Kalley expulsou um membro da igreja por não libertar seus escravos, mostrando um compromisso raro entre as denominações protestantes da época.

Apesar de algumas vozes contrárias, a missão protestante falhou em promover a humanização dos escravizados, contribuindo para a perpetuação de visões racistas ainda presentes na sociedade. A igreja protestante foi e é racista. A solução passa pelo arrependimento e pela adoção de estratégias antirracistas, fruto da renovação espiritual e mental.

Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Romanos 12.1, 2 (ARC)

 
 
* Gabriella Vicente é Escritora, Sanitarista, Militante, professora e doutoranda Política, Planejamento e Administração em Saúde. Membra do Movimento Negro Evangélico, compreende o mundo a partir da arte do relacionamento e acredita que este se dá pela escuta, escrita e fala, mas sobretudo pelas trocas. É autora da obra infantojuvenil “A Viagem de Dorinha” e coautora das obras “A mulher negra e suas transições” e “Teologia de Favela”.
 

 

 

 
Bibliografia

 

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